O corte de Junho de 2013

Teve Junho de 2013 a capacidade de realizar sua obra? De transformar a sociedade brasileira insurrecionalmente em favor daqueles e daquelas que mais necessitam? A resposta imediata é que não teve a capacidade mesma de encerrar sua própria obra, mas ainda há tempo para outros Junhos.

FOTO: WIKIMEDIA COMMONS

Por Ronaldo Tadeu de Souza

“A realidade que eu conhecera não mais existia. Bastava que a Sra. Swann não chegasse exatamente igual e no mesmo momento que antes, para que a avenida fosse outra”. Marcel Proust termina assim o No Caminho de Swann, 1º volume do Em Busca do Tempo Perdido. O corte na existência de Marcel, personagem do romance, provocado pela ausência da Sra. Swann, incitou nele toda uma série de circunstâncias que marcará todo o restante da narrativa até o Tempo Redescoberto, último volume da obra, ao qual ficamos sabendo de o porquê ele a escreveu.

A sensação que muitos tem nestes 10 anos de Junho de 2013 é similar à do herói proustiano. Mais do que qualquer outra interpretação os eventos que irromperam pelo Brasil todo naquele ano, a partir de uma reivindicação, aparentemente simplória e sem importância, pois era uma demanda de jovens estudantes de diversas classes sociais para que não fossem aumentadas as passagens de ônibus em vinte centavos, marcou um corte, uma ruptura, na vida política, social, cultural e moral do Brasil.

Antes de 2013, malgrado as constantes instabilidades do nosso sistema de governo, dos conflitos políticos entre partidos e grupos de interesse, das disputas por projetos sociais, das divergências concernentes às ideias que ainda importavam para ler o mundo, percebíamos que as soluções de consenso, os processos racionais de tomada de decisão, a crítica ponderada frente a discordâncias e as coisas por mais complexas e potencialmente de difícil resolução seriam resolvidas com diálogo ponderado. Por então, havia uma década que o PT era a direção política nacional do país, tendo na oposição o PSDB, com sua velha guarda sempre sapiente, educada – e sobretudo, assim como o PT, fiel às regras de convivência democrática.

Estávamos em vias de concretizarmos a tão estimulante frase, “Brasil, o país do futuro”. A foto do maior monumento da sociedade brasileira, o Cristo Redentor, ponto turístico icônico do Rio de Janeiro, no “The Economist” decolando como um foguete rumo ao espaço reservado às nações do 1º mundo, mesmo essas brasilianizadas, representava o espírito e panorama político e social daqueles anos pré-2013. Lula terminava seu 2º mandato com um índice de aprovação espantoso para os padrões brasileiros, alcançava 82%, enquanto seus antecessores, Itamar Franco e FHC, não alcançaram 30% de ótimo/bom em 1993 e 2002. Dilma Rousseff foi eleita em 2010 com uma espécie de beneplácito dos números.

Eram os dias em que se discutia as vantagens e desvantagens econômicas do PAC 2. Por então, a Copa das Confederações, que no calendário esportivo da FIFA antecede o maior torneio esportivo futebolístico do planeta, a Copa do Mundo era aguardada com entusiasmo, sem dúvida era um autoelogio para as camadas mais simples da população, uma experiência marcante para um país amante do futebol e que poderia se redimir do trauma de 1950 no Maracanã diante do Uruguai de Ghiggia.

Em Junho de 2013, sucede-se um corte, que neste ano completa uma década. As interpretações, avaliações e leituras do ocorrido são as mais variadas. Pesquisadores e pesquisadoras das ciências sociais, filosofia e história disputam entre si a compreensão mais correta do evento; políticos partidários e militantes têm visões distintas sobre o que ocorreu naqueles dias derradeiros; jornalistas e a opinião pública divergem sobre os efeitos das manifestações que atravessaram o país. Ainda assim, e malgrado toda a multiplicidade de sensações e as diversas estruturas de sentimentos que afetam a nós, é inegável que o ponto fundamental, decisivo, de Junho de 2013 é que ele realiza uma cesura – e que hoje enfrentamos seus efeitos.

Efeito é uma palavra ou termo controverso para designar qualquer acontecimento político, pois perde-se o sentido contingente e imediato do mesmo, transferindo para ele posições construídas post-factum e que de nenhuma maneira estava no instante de ação dos sujeitos políticos e sociais que desencadearam tal momento. É justamente essa a virtude de Junho de 2013. De ser uma vicissitude que resulta em um corte.

As manifestações tiveram início, e não importa se em São Paulo, Salvador, Porto Alegre ou Recife, com uma demanda que aparentemente era da ordem do simples e corriqueiro para a política nacional e para o establishment. Os vinte centavos na passagem de ônibus e metrô só não eram sentidos por aqueles e aquelas que não sabem o que é o impacto nas contas domésticas, para quem pouco tem para seu entretenimento, para quem tem de fazer deslocamentos diários de um trabalho a outro, para quem tem de ir da casa da mãe à escola da filha e do filho e por vezes voltar ao trabalho estafante. Daí a adesão a Junho de 2013 ter alcançado os mais diversos setores da sociedade brasileira – e não só, como querem alguns, estudantes de ciências sociais de universidades públicas. Ora, se fosse assim não estaríamos discutindo uma década depois algo que não ultrapassou parcos setores minoritários. Foram de fato jornadas rebeldes o que presenciamos naqueles dias há 10 anos atrás. E como tal foram jornadas eminentemente de esquerda por sua convocação, organização, participação e exigências. Se havia grupos de direita, patriotas, os de verde e amarelo infiltrados na participação dos atos, é uma variação que em nada diz acerca do caráter marcadamente – insisto – de esquerda das Jornadas de Junho de 2013. No limite de espaço aqui cedido não posso elencar e analisar as demandas de Junho, mas os porquês eram: “passe livre”, “moradia para todos”, “fora Eike”, “não às remoções”, “contra a privatização do Maracanã” e a “polícia que mata na favela é a mesma que reprime na avenida”. A quem se interessar, as informações, os dados, os textos e as experiências estão dispostos para ver e entender o que se desejava por então. Do mesmo modo é preciso averiguar quem convocava os atos e quem os organizava para se argumentar sobre o Ovo da Serpente. Naquele momento a esquerda institucional representada pelo PT perdia o lugar que lhe era historicamente garantido. As ruas, os novos sujeitos políticos, as formas de articulação inéditas, grupos sociais pouco vistos antes emergiram como a lava de um vulcão. Não é possível entender a nova fase do movimentos negro (com todas as figuras que o representa hoje, para o bem e para o mal), do movimentos feminista, do movimento LGBTQIA+, as reivindicações em torno da preservação do meio-ambiente, das modalidades coletivas de representação parlamentar (muitas de setores periféricos), bem como a circulação de ideias (via a presença de casas editorias com um perfil singularmente independente, sites e revistas progressistas, teóricos e teóricas incomuns por aqui) sem o acontecimento e o corte de Junho de 2013.

Entretanto, os efeitos de Junho de 2013 são inegáveis. Não se trata, ao menos do meu ponto de argumentação (o que sem dúvida está em disputa), afirmar que 2013 gerou a ultradireita e o bolsonarismo. A noção de corte é justamente no sentido de se distanciar dessa leitura. Ocorreu que setores da direita se reorganizaram na sequência dos atos de Junho. A formulação pode ser inconveniente, mas o que veio na sequência das jornadas de Junho de 2013 é uma espécie de contraofensiva de conservadores, liberais, reacionários e fascistas. Nos termos do historiador Arno Mayer em A Dinâmica da Contrarrevolução na Europa – o que presenciamos nos aos subsequentes a Junho foi uma espécie de contraofensiva preventiva da direita brasileira. Eles passaram a tomar conta das ruas, mobilizaram sentimentos parciais da população contra o sistema político, atacaram violentamente a cultura crítica de esquerda em todos os espaços e oportunidades que assim permitisse, desavergonharam de se declarem de direita, fizeram circular seus autores prediletos (Roger Scruton entre eles) e, mais importante, construíram uma justaposição que perpassa a política e a sociedade brasileira até os dias de hoje com uma certa atenuação após a vitória de Lula em 2022: um projeto econômico que reposiciona o Brasil no capitalismo político-extrativista mundial com formas de disputa política que se valem sem nenhum pudor da violência estatal, comportamental e moral (utilizando a mentira sempre que necessário). Esse último ponto pode ser verificado no 8 janeiro de 2023 em Brasília, com os prédios dos três poderes sendo invadido por bolsonaristas de verde e amarelo com o apoio, suporte e regozijo das forças de segurança pública. O corte de Junho ainda não se fechou. No fim de Em Busca do Tempo Perdido, no volume O Tempo Redescoberto, presenciamos Marcel dizer consigo mesmo o seguinte: “terei não apenas tempo, mas capacidade para realizar minha obra? [de modo] […] a lhe imprimir o cunho do Tempo cuja noção se me impunha hoje com tamanho vigor.” Teve Junho de 2013 a capacidade de realizar sua obra? De transformar a sociedade brasileira insurrecionalmente em favor daqueles e daquelas que mais necessitam – os trabalhadores e trabalhadoras, os estudantes e as estudantes pobres, os negros e negras, os sem moradia e acesso a saúde para se manterem vivos? A resposta imediata é que não teve a capacidade mesma de encerrar sua própria obra, mas ainda há tempo para outros Junhos, e o cunho do nosso Tempo ainda nos impõe com todo vigor, emergência e exceção-outra (Walter  Benjamin) um evento do tamanho do ocorrido há 10 anos.


A rebelião de 2013 chegou sem aviso prévio. Afinal, a economia emitia sinais de prosperidade, com taxa de crescimento. Mas em junho daquele ano, gigantescas multidões tomaram as ruas das principais cidades. O que havia começado como um movimento contra o aumento das passagens de ônibus se transformou em uma insurgência que sacudiria a vida política do país.

Entender o que havia ocorrido se tornou um dilema para estudiosos e agentes políticos. Era necessário compreender os impactos daqueles acontecimentos sobre o processo político dos anos seguintes. Após dez anos, é possível traçar um diagnóstico daquele momento? As manifestações foram uma explosão popular autônoma? É possível afirmar que Junho de 2013 contribuiu para o aumento e consolidação da extrema direita nas esferas de poder do país?

Essas e outras perguntas servem de bússola para os nove artigos e o ensaio visual que compõem a obra Junho de 2013: a rebelião fantasma, organizada por Breno Altman e Maria Carlotto. Além de textos dos organizadores, o livro traz contribuições de Camila Rocha, Jones Manoel, Lucas Monteiro, Mateus Mendes, Paula Nunes, Raquel Rolnik, Roberto Andrés e Vladimir Safatle, prólogo da ex-presidenta Dilma Rousseff, além de fotografias das manifestações feitas por Maikon Nery e texto de orelha de Isabela Kalil. Com diferentes perspectivas, os autores buscam desvendar aquele momento, que se tornou uma das maiores ondas de mobilização social dos últimos anos. A obra tem apoio da Fundação Friedrich Ebert Brasil.


DAS CIDADES REBELDES À REBELIÃO FANTASMA

Das cidades rebeldes à rebelião fantasma, a nova série de lives da TV Boitempo analisará os 10 anos das manifestações que tomaram as ruas do Brasil e seus legados. O lugar das esquerdas, a ascensão da extrema-direita, a disputa de narrativas, a questão urbana, a participação do precariado e o fortalecimento do movimento negro serão debatidos por autores das coletâneas Cidades rebeldes, publicada ainda quando se desenrolavam as manifestações em 2013, e Junho de 2013: a rebelião fantasma, um balanço dos acontecimentos uma década depois.

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Ronaldo Tadeu de Souza é professor no Departamento de Ciências Sociais na UFSCar e pesquisador no Departamento de Ciência Política da USP, no Cedec e no GPPPC-Grupo de Pesquisa Política e Pensamento Crítico.

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